segunda-feira, 5 de maio de 2008

Assunto: [culturaspopulares] Cotas semanticamente corretas

Cotas Semanticamente Corretas

Qualquer sistema de cotas implica em uma quebra da ordem
liberal. Portanto, a defesa de cotas na universidade estatal
brasileira precisa ser bem feita e deixar claro, ao menos do
ponto de vista da esquerda democrática, que vamos dar passos
adiante com ela, não passos para trás.

Dar passos para trás, no caso, envolve fazer a defesa do
sistema de cotas na base dos programas do Estado corporativo
de Vargas, uma imitação tropical do fascismo italiano. Dar
passos para frente é ver como que cotas étnicas para o
ensino superior (e outras coisas similares) envolvem uma
melhoria da democracia liberal, não um retrocesso.

Há duas maneiras de colocar objetivos que justificariam a
institucionalização das cotas que, pela ótica da filosofia,
seriam de difícil aceitação. Objetivos assim postos ajudam
demais à direita política. Ela os endossa de modo rápido,
para em seguida mostrar o quanto o sistema de cotas é um erro.

O primeiro objetivo que não deveria ser evocado é o de que
as cotas devem reparar uma injustiça histórica contra negros
e índios. O segundo objetivo nesse mesmo sentido é o de que
as cotas visam dar chances para negros e índios estudarem.

O primeiro objetivo é errado, pois jamais um sistema de
cotas seria reparador de injustiças. Ainda que possamos
pensar em “justiça histórica”, que visa premiar netos de
índios e negros que foram oprimidos por uma sociedade com
leis que hoje abominamos de modo decisivo e correto, como a
da escravidão, o sistema de cotas não reporia justiça
alguma. É uma medida setorial demais para se pensar nela
como tendo alguma amplitude nesse sentido. Ninguém consegue
ser perdoado pela escravidão. Ninguém consegue com medidas
setoriais assim amenizar os males do Brasil dual que nasceu
da escravidão. Ninguém pode ser “reparado” por não ter
chances na medida em que nasceu neto de escravos. A
injustiça está feita.

O segundo objetivo é um erro social e pedagógico. Ninguém
consegue fazer um grupo social melhorar sua educação por um
sistema de cotas no ensino superior. Caso exista disposição
de fazer um grupo social que supomos estar menos educado se
tornar mais educado, competitivamente, o melhor modo ainda é
o receituário liberal: escola básica pública, gratuita,
obrigatória, laica e de boa qualidade para todos. Fora
disso, tudo é mais engodo de boa ou má intenção.

Bom, então, para que serviriam as cotas, na verdade? Como
a tomo, a filosofia pode dizer que as cotas étnicas têm a
ver com a ampliação da familiaridade entre grupos
diferentes, com a socialização da cultura popular no campo
erudito e vice-versa para além da mera “amostra” e, enfim,
com a constituição de parte do tecido social de uma forma
mais rica e imaginativa.

Quando a cultura negra e a do índio reaparecem na
universidade não como amostra, mas junto com práticas de
estudantes (obviamente modificada pelo tempo), ela deixa de
ser mero objeto de tese acadêmica, e passa a ser parte do
Brasil que elabora sua cultura como um todo. Quando grupos
diferentes são colocados em convívio em um meio restrito
como o ensino superior, há uma ampliação inaudita da
familiaridade entre pessoas de origem diferente e uma
crescente guerra contra a naturalização de falsas
impressões. Estudantes negros e índios se mostram iguais aos
brancos em defeitos e virtudes – quem cresce nesse ambiente
começa a perceber que os grupos humanos são mais parecidos
do que se poderia imaginar. Quando o tecido social que é
construído a partir dessa experiência de troca se forma e
caminha para uma reta final, uma série de novas idéias surge
no âmbito do saber social, e a sociedade que emerge dali se
mostra muito mais criativa e imaginativa no campo das artes,
ciências e
tudo o mais. Após esses três objetivos serem atingidos, o
preconceito racial chega a níveis muito baixos.

Assim, a questão das cotas é mais uma questão de criar o
convívio entre negros, índios e brancos em um novo lugar – a
universidade. Isso é o que importa. Isso é a verdade. É
desse modo que as cotas são úteis para uma democracia
liberal que quer se aperfeiçoar. Não pensem que esses
objetivos que coloco, mais realistas que os objetivos da
reparação da injustiça e da melhoria da educação, são
pequenos só porque são os que são possíveis de serem
efetivamente conseguidos. São objetivos grandiosos. Um país
que os atinge se mostra mais plural, mais rico, mais capaz.
Só os que defendem um país com um só sistema de idéias se
colocam contra tais objetivos.

O sistema de cotas um dia deverá chegar ao fim. É como
todo e qualquer sistema de bolsas ou privilégios em uma
sociedade democrática liberal. Faz parte da utopia liberal
admitir que ela é histórica, que deverá se realizar aos
poucos e passar; e que dela haverá de brotar uma sociedade
praticamente regrada por si mesma, quase que sem a presença
do Estado, de leis que precisem dizer que o homem é igual
perante a lei, e de leis que precisem dizer que os que não
estão sendo tratados iguais deverão ser postos em situações
de mais regalias.

Paulo Ghiraldelli Jr. “O filósofo da cidade de São Paulo”
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Um comentário:

José Carlos Lima disse...

obrigado pelo comentário no meu blog,
legal ver este seu blog atualizado,
vou ler tudo com cuidado,
abraço,